De um tempo a esta parte escuito em muitas bocas a expressom “pôr a vida no centro”. Umha frase mui presente entre a comunidade biodanceira, alude à pedra angular do Sistema Biodanza e ao compromisso que deve orientar a nossa prática profissional, pessoal e coletiva.
Recordo que a primeira vez que escuitei falar do princípio biocêntrico fiquei mui surpreendida dado que convergia em grande medida com as formulaçons ecofeministas. A ideia de que a fantasia de autosuficiencia, progresso e domínio da natureza oculta umha profunda ecodependência. De que formamos parte dunha grande rede que conecta diferentes formas de vida e que a vulnerabilidade que nos caracteriza como espécie faz-nos interdependentes. Precisamos de outres para viver. Por isso o amor, a ternura e a sociabilidade som tam importantes para a nossa sobrevivência.
Porém, os corpos que historicamente reproduzírom e sustentárom a vida humana e nom humana fôrom o das mulheres e identidades dissidentes do sistema sexo-gênero heteropatriarcal.
Fôrom corpos marcados por processos de despojo e racializaçom. Corpos subalternizados no sistema mundo que habitamos mas imprescindíveis para manter as pessoas em condiçons saudáveis, atendendo-as quando enfermavam ou em determinados momentos do seu desenvolvimento. Que cuidárom de que os bosques, os rios e as sementes pudessem chegar até os nossos dias (apesar do espolio ao que fôrom e seguem a ser submetidos)
Para fazer da centralidade da vida um princípio ético de alcance é preciso reflexionar sobre as condiçons sob as que se sustenta e reproduz a vida humana e nom humana. É preciso identificar as relaçons de poder que atravessam os processos de manutençom da vida de forma concreta, baseados em construçons culturais que perpetuam as desigualdades. Ao eludir essa responsabilidade corremos o risco de que o desejo de um presente e um futuro diferente, baseado no florescimento da vida em toda a sua maravilhosa diversidade, acabe vazio de significado.
Sinto que nos encontramos perante um desafio histórico que estamos apeladas a assumir como comunidade e como Sistema Biodanza. Se há um compromisso real e profundo com o desenvolvimento dos potenciais e o fortalecimento das identidades, com umha mudança de paradigma que supere o marco sociocultural patriarcal, capitalista e colonial (o que Rolando Toro chamou de transculturaçom) precisamos reconhecer e desmantelar as relaçons de poder. Dinâmicas estruturais e relacionais que mantêm corpos e subjetividades num lugar de inferioridade, invisibilizaçom e exclusom. Que impedem o desenvolvimento de existências autênticas, livres, plenas e felizes.
Estamos a fazer o suficiente como comunidade biodanceira para abordar as relaçons de poder e de desigualdade em base a identidade de gênero e a orientaçom sexoafetiva? E em base a outras categorias de opressom como raça, procedência, classe, corporalidade, capacidades, etc? Quanto de diversos som os nossos espaços, os grupos que facilitamos, as turmas nas escolas de Biodanza? Em que medida estamos engajadas como movimento a transformar a relaçom com a natureza neste momento histórico de feroz devastaçom e impacto sobre a biosfera?
Os efecofeminismos e os feminismos comunitários de Abya Yala nos alertam de que as violências exercidas sobre os corpos das mulheres e dissidências e sobre os territórios têm o mesmo substrato. O constructo cultural patriarcal, androcêntrico e colonial baseado na dominaçom e no controle.
Gostaria que este oito de março nos alente a sentipensar sobre como o gênero – enquanto conceito referido à situaçom de desigualdade entre mulheres, homes e outras identidades- atravessa o Sistema Biodanza e que impacto tem isto para a reproduçom ou a transformaçom da ordem vigente.
Em base a que construçons culturais estam criadas determinadas danças? Tem sentido seguir associando o feminino a determinadas características (sutileza, doçura, receptividade) e o masculino a outras distintas e opostas (açom, força, iniciativa)? Por que seguir falando de energia masculina e feminina quando, até onde chegam os meus conhecimento de física, as energias nom se adscrevem a sistemas de gênero? Como estamos abordando o assédio e os abusos dentro dos espaços de Biodanza? Com que ferramentas contamos para acolher e acompanhar a alguém que sofreu este tipo de situaçons nas nossas atividades? Estamos segures de que nom reproduzimos lógicas culpabilizadoras, revitimizantes ou descredibilizadoras?
Gostaria de que pudéssemos habilitar mais espaços para abordar estas e muitas outras questons que pivotam em torno às relaçons de gênero e outros eixos de opressom sistémica. Confio em que o grande esforço que estamos a fazer desde a comissom de gênero adscrita à associaçom Biodanza Ya dea como frutos umha maior consciencializaçom e compromisso. Compromisso em transformar as relaçons de poder para que realmente poidamos pôr a(s) vida(s), em liberdade, equidade, diversidade e plenitude, no centro.
* O título deste texto está baseado neste extrato que figura na apostila de Transcendencia: “La mas subversiva de todas las disciplinas es aquella que se funda en el respeto por la vida, el goce de vivir, el derecho al amor y al contacto. Desde el principio biocéntrico usted desconoce la autoridad externa, sea ésta de un gobierno, de violencia institucionalizada o de las ideologías políticas y religiosas que discriminan seres humanos. El principio biocéntrico es insurgente.” (Rolando Toro)